Aldem Bourscheit
Cerca de quatrocentos pesquisadores de 31 países debatem esta semana, em Curitiba (PR), sobre o rumo dos estudos na Antártica. Na reunião, três em cada dez trabalhos serão apresentados por brasileiros. É a primeira vez que o Comitê Científico sobre Pesquisa Antártica (SCAR, sigla em inglês), com sede na Inglaterra, promove um evento desse porte na América do Sul. O Comitê promove e coordena todas as pesquisas desenvolvidas naquele continente.
Durante a reunião do SCAR, alguns trabalhos mostrarão a importância do continente gelado para o equilíbrio ecológico e climático do Planeta. O encontro também dará maior visibilidade ao Programa Antártico Brasileiro (ProAntar), que começou no início dos anos 80 e é considerado modelo em alguns segmentos pela comunidade internacional.
Além da apresentação de trabalhos e pesquisas, o evento contará com exposições de materiais e de fotos sobre as atividades do Brasil no continente. A reunião acontecerá entre hoje e sexta-feira (29), na Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Entre os participantes do Ministério do Meio Ambiente, estão a bióloga e consultora do ProAntar, Tânia Brito, além de Ana Paula Prates e Eduardo Oliveira, do Núcleo da Zona Costeira e Marinha.
O Ministério do Meio Ambiente trabalha para que as atividades dos brasileiros na Antártica causem o menor impacto possível sobre o frágil equilíbrio natural, e também ajuda a financiar pesquisas sobre clima e biologia na região. Apenas nos últimos três anos, o Ministério investiu R$ 6 milhões nesses estudos, que serão concluídos por volta de 2008.
O Brasil na Antártica
O Tratado da Antártica entrou em vigor em 1961 e foi definido pelas Nações Unidas para reservar o continente à paz, à pesquisa e à cooperação internacional. Na região, estão proibidas atividades militares, o depósito de qualquer tipo de lixo e a exploração econômica de minerais até 2047.
O Brasil assinou o acordo em 1975 e, sete anos depois, em 1982, fez sua primeira viagem ao continente. Os navios pioneiros foram o Wladimir Besnard e o Barão de Tefé. Esse feito abriu uma nova fronteira para a pesquisa nacional.
Apenas um ano após a conquista brasileira, em 1983, o País passaria a ter direito à voz e a voto no Conselho Consultivo do Tratado, onde 27 países decidem sobre as atividades na Antártica. Esses esforços nas áreas científica, logística e diplomática fizeram com que o Brasil fosse aceito como membro do SCAR.
No entanto, para continuar fazendo parte desse seleto grupo e, no futuro, aproveitar os recursos naturais da Antártica de forma sustentável, o País precisava manter pesquisas na região.
O próximo passo foi a instituição do Programa Antártico Brasileiro (ProAntar), gerenciado pelos Ministérios do Meio Ambiente, das Relações Exteriores, da Defesa, da Ciência e Tecnologia, das Minas e Energia e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que fornece bolsas de estudo.
No continente, o programa tem como base a Estação Comandante Ferraz, na Ilha Rei George, na Península Antártica. A estrutura foi montada em 1984, com oito contêineres de aço transportados pelo navio Barão de Teffé. Contando hoje com 64 módulos e com o apoio do navio Ary Rongel, a estação abriga no máximo 15 pessoas no Inverno e até 50 nos meses quentes.
As instalações abrigam quartos, cozinha, centro de comunicações com telefone, fax e Internet e laboratórios para pesquisas. A cada ano, 320 mil litros de óleo combustível são consumidos por tratores, motos de neve, barcos e na geração de energia. Todo o combustível, inclusive do Ary Rongel, é doado pela Petrobrás.
Os esgotos da estação são tratados antes de alcançar o mar, e o lixo que pode ser reciclado é trazido de volta ao Brasil. O restante é incinerado.
Passado e futuro sob o gelo
Um olhar mais atento revela que a Antártica abriga em suas águas e sob o manto de gelo, que pode chegar a quase cinco quilômetros de espessura em alguns pontos, uma imensa quantidade de formas de vida adaptadas ao frio extremo e informações valiosas sobre o passado e o futuro do planeta.
Um dos braços da pesquisa brasileira no continente reúne um time de biólogos, químicos, geólogos, oceanógrafos, físicos e até arquitetos. São quinze grupos de oito instituições nacionais. Muitas pesquisas contam com a participação de estrangeiros, e boa parte do trabalho é debatida e analisada com outros países, como Espanha, Inglaterra e Estados Unidos.
Essas equipes avaliam o que a presença de cientistas, turistas e equipamentos têm provocado na Península Antártica. Com isso, será definido um plano para que as atividades da estação Comandante Ferraz causem cada vez menos impactos sobre o ambiente.
Reduzir o lixo e a eventual poluição por óleo, a degradação de trilhas, o impacto na rala vegetação e nos ninhos de pingüins e outras aves são outras preocupações. "Conhecer melhor o ambiente é fundamental para melhor aproveitá-lo e minimizar os estragos", explica Lúcia de Siqueira Campos, bióloga de oceanos profundos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Na área oceânica, uma das pesquisas está comparando o que ocorre na área da estação, por onde chegam e saem embarcações e onde os esgotos tratados são despejados no mar, por exemplo, com outros pontos na Baía do Almirantado. São avaliadas a quantidade de microorganismos e a presença de poluentes, inclusive em aves e outros animais.
De acordo com a bióloga da UFRJ, os resultados iniciais mostram que existe um número maior de espécies nas áreas intocadas.
Para o bioquímico Edson Rodrigues, da Universidade de Taubaté (SP), as pesquisas antárticas também ajudarão a melhorar a vida humana. Segundo ele, peixes e pingüins, que conseguem sobreviver em temperaturas muito baixas, podem ensinar como conservar alimentos por mais tempo, além de trazer benefícios à medicina. "Quem sabe, no futuro, poderemos operar partes do corpo congeladas", explicou.
Mesmo não dispondo dos recursos suficientes e nem usando equipamentos de ponta, os brasileiros levam vantagem pela integração das equipes na coleta de materiais e nos laboratórios.
A qualidade desse trabalho foi reconhecida no início do ano durante reunião no Texas, Estados Unidos. "Essa experiência e o cuidado que se toma com a presença humana na região deveriam ser mais usados, até no próprio Brasil", ressaltou Lúcia de Siqueira.
A ameaça das mudanças climáticas
Depois de mais de 40 anos de pesquisas, tornou-se evidente que a Antártica pode sofrer graves conseqüências com as mudanças climáticas. Previsões mostram que se todo aquele gelo derretesse, o nível dos mares poderia subir até 60 metros. Mesmo deixando especulações de lado, tudo o que acontece por lá pode trazer sérios prejuízos para o Planeta.
O Brasil, um país de dimensões continentais e com forte economia agrícola, sofre forte influência das massas que vêm da região austral. As geadas características do Inverno no Sul, o turismo e culturas como maçã, trigo e cevada dependem do frio. Um clima equilibrado é decisivo para muitas economias e para a vida das populações.
Cerca de 30 projetos nacionais e estrangeiros estudam o papel da Antártica na regulação do clima global. A comunidade internacional está debruçada sobre esse problema há mais de uma década.
Com 14 milhões de quilômetros quadrados no Verão e até 22 milhões de quilômetros quadrados de puro gelo no Inverno, o continente funciona como um "radiador de calor" do Planeta. Essa imensa massa resfria o calor dos trópicos com a ajuda dos ventos, equilibrando o clima global.
A Antártica retém 90% do gelo e 80% da água doce da Terra. O Ártico, por sua vez, conta com apenas 7% do gelo planetário. "A região também é um grande refletor de raios solares", explicou Francisco Aquino, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Estudos mostraram que a temperatura média na Península Antártica, onde está a estação brasileira, subiu 2,5ºC nos últimos 50 anos. Enquanto isso, no interior do continente, houve queda de 0,5ºC no mesmo período. "Ainda não sabemos se isso ocorre por mudanças climáticas globais ou se o fenômeno é local", disse Aquino.
De acordo com o geógrafo, a ciência comprovou que os termômetros globais variam com a quantidade de dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4) na atmosfera. Na história, sempre que o nível dessas substâncias aumentou, a temperatura também subiu. "A região também é importante na absorção de carbono da atmosfera, mas poucas pesquisas são feitas nessa área", lembrou o professor Carlos Garcia, do Setor de Oceanografia Física da Universidade Federal do Rio Grande, em Rio Grande (RS).
O temido aquecimento global pode ser causado pela ampliação do efeito estufa. Esse fenômeno é natural e ajuda a regular o clima, mantendo na Terra parte do calor recebido do Sol. No entanto, com a poluição, o Planeta estaria retendo mais calor do que o normal. "Isso pode ampliar o número ou a intensidade das tempestades e tornar o clima caótico. E não há obra de engenharia que barre isso", lembrou Aquino.
A mudança nos níveis globais de CO2 e de CH4 é comprovada pelas medições realizadas no gelo e nas rochas antárticas. Retirando cilindros de gelo (testemunhos) das profundezas, os cientistas obtêm dados sobre a atmosfera do passado em diminutas bolhas de ar.
Depois de analisado, esse ar informa sobre a poluição causada pela industrialização e pelo uso de venenos na agricultura, por erupções vulcânicas e até pelo chumbo na época do Império Romano.
Até agora, foi comprovado um aumento de 30% no CO2 e de 100% no CH4 desde a Revolução Industrial (Século XVIII), quando as indústrias começaram a ganhar o Planeta. A concentração desses gases é hoje a maior dos últimos 420 mil anos. "A Antártica não solucionará os problemas globais do clima, mas trará informações valiosas para o nosso futuro", lembrou Aquino.
Na rota dos caçadores
Seguindo rotas de caçadores de baleias e focas, aventureiros têm testado a sorte nas perigosas águas do Oceano Austral há quase cinco séculos. O pioneiro navegador a se aproximar da Antártica foi Fernão de Magalhães, em 1520. No entanto, apenas em 1897 ocorreria o primeiro desembarque no continente, pelo norueguês Carstens Borchgrevink.
Em seguida, começou a corrida pela chegada ao Pólo Sul. Na frente, saiu o irlandês Ernest Shackleton, seguido pelo inglês Robert Falcon Scott. Shackleton não chegou a alcançar seu destino, e o segundo acabou morrendo na empreitada. Ironicamente, coube a outro norueguês o pioneirismo: em 1909, Roald Amundsen fincou a bandeira de seu país no Pólo Sul.
Nos anos que se seguiram ao descobrimento, milhões de animais foram mortos, principalmente por navios britânicos e norte-americanos. Elefantes, lobos marinhos e baleias quase foram extintos, e pingüins eram queimados em caldeiras para extração de óleo de focas.
Hoje, as atenções estão mais voltadas para a pesca, que é realizada com base em cotas definidas a cada estação.
Ao contrário do que se imagina, a Antártica nem sempre foi coberta de gelo. Antes disso, fazia parte da chamada Gondwana, que reunia os continentes hoje conhecidos. Há 150 milhões de anos, essa gigantesca massa de terra se partiu e a Antártica seguiu seu rumo até chegar ao Pólo Sul e congelar. Fósseis são encontrados por lá até hoje, mostrando que a região era ocupada ao menos por plantas bem diferentes e maiores que os atuais musgos e fungos.
A vida na Antártica está intimamente ligada à riqueza do mar. Baleias, golfinhos, pingüins, focas, elefantes-marinhos, skuas, albatrozes, petréis e uma infinidade de peixes e outras espécies dependem da preservação do Oceano Austral. Surpreendentemente, alguns locais próximos à costa são tão ricos e coloridos quanto recifes de coral tropicais.
Novo destino turístico
As belezas naturais e o relativo isolamento do continente, em plena era da globalização, tornaram a Antártica um novo destino, muito procurado pelos turistas. Com os avanços tecnológicos, cada vez mais pessoas têm acesso à região, mesmo que nenhum centavo seja revertido para a preservação daquele ambiente.
Segundo dados da Associação Internacional de Operadoras de Turismo Antártico (IAATO, sigla em inglês), entre 1990 e 2000 pelo menos 74 mil pessoas estiveram por lá. Os principais pontos visitados são a Península Antártica e as ilhas próximas, distantes mil quilômetros da América do Sul. Ninhos e ovos pisoteados e animais estressados são comuns.
O ambiente selvagem tem proporcionado, ainda, a realização de esportes de aventura, como maratonas, surfe na neve e alpinismo. Essas atividades se valem do relevo acidentado do continente, que tem altitude média de 2.500 metros. O ponto culminante da Antártica é o Maciço Vinson, com 5.140 metros de altitude.
Um importante instrumento para proteção do continente foi aprovado na última reunião do Tratado Antártico, em junho, na Suécia. Depois de 13 anos de discussão, foi definido que qualquer país causador de um acidente na região, um derrame de óleo, por exemplo, será responsabilizado e deverá recuperar os estragos.
A Antártica ainda é o continente mais isolado, com os ventos mais fortes e o lugar mais frio do Planeta. Em 1983, na estação russa Vostok, foram registrados -89,2ºC, a menor temperatura já medida no Planeta. No entanto, nem isso tem impedido o avanço do Homem sobre o continente.
Para garantir que a Antártica siga cumprindo seu papel no equilíbrio ecológico global, a continuidade de pesquisas como as que são desenvolvidas pelos brasileiros é fundamental.
Para saber mais
www.mma.gov.br/port/sbf/dap/antagaam
www.pucpr.br/scarbiologysymposium
www.cptec.inpe.br/antartica
www.ufrgs.br/nupac
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