Carine Correa
Às vésperas da Convenção das Nações Unidas sobre o Clima, em Copenhague, na Dinamarca, onde países vão discutir redução de emissão de CO², um projeto pioneiro executado há 22 anos por pequenos agricultores em Nova Califórnia, Rondônia, de atividades extrativistas pelo sistema agroflorestal, evita a devastação de mais áreas de floresta, contribuindo, assim, para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. O SAF (Sistema Agroflorestal) permite atividades extrativistas sustentáveis associadas à reconstituição de regiões degradadas.
Com apoio do subprograma Projetos Demonstrativos (PDA), do Programa de Proteção às Florestas Tropicais (PPG7/MMA), o projeto Reca (Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado) é conduzido por uma organização de agricultores associados que optaram por investir na produção de espécies típicas da floresta amazônica, em detrimento da lavoura branca e da pecuária, de forma a garantir a preservação do bioma e o plantio de vegetação nativa. Localizado nas divisas entre o Acre, Amazonas e Bolívia, o projeto se destacou como alternativa econômica bem sucedida em meio a uma região notoriamente desmatada.
A sede da associação beneficia e comercializa a produção de 300 famílias, e indiretamente de outras 500. Atualmente, o Reca conta com cerca de 1500 hectares de SAFs (Sistemas Agroflorestais) implantados em várias áreas de plantios, onde existem mais de 40 tipos diferentes de espécies (dentre frutíferas, madeireiras e medicinais). O reflorestamento é feito de forma consorciada e adensada, com pouquíssimas áreas de monocultura.
Cada agricultor participante recebe pelo que produz e tem o compromisso de plantar pelo menos um produto agroflorestal, além de participar das reuniões promovidas pela organização. A produção é trazida para a sede do Reca para ser beneficiada. Depois os produtos são comercializados pelo grupo, o que garante um aumento do preço final para o produtor. No último ano, a associação teve um faturamento de R$3 milhões, e há a expectativa de que a produção seja duplicada em cinco anos.
Entre as espécies produzidas destacam-se o cupuaçu, pupunha, andiroba, bacaba, copaíba, seringa, sangue de dragão e rambotã. A associação dispõe de três unidades de beneficiamento de palmito pupunha, manteiga de cupuaçu, óleo da castanha da Amazônia e de andiroba, e de polpas de açaí, araçá-boi e acerola. A unidade conta ainda com um barracão para o tratamento das sementes de pupunha e produz também mel, licores, geléias, doces e sabonetes.
De acordo com Hamilton Condack, gerente de comercialização do Reca, trata-se de uma organização social produtiva de base familiar comunitária. O modelo é participativo e de gestão compartilhada, e todo agricultor se sente parte e dono do projeto. O objetivo dos cooperados é promover a sustentabilidade com qualidade de vida, de forma que a sociobiodiversidade da Amazônia seja respeitada.
Ele garante que o sistema já está sendo replicado em outras áreas da região amazônica pelos bons resultados apresentados. "Em uma pequena área de plantio de cupuaçu e pupunha, por exemplo, a renda supera a da criação de 100 cabeças de gado", explica Condack.
O projeto já recebeu duas vezes o Prêmio Chico Mendes. Também foi condecorado com o primeiro lugar da Fundação Ford e pelo Objetivo Desenvolvimento do Milênio(ODM), do Governo Federal, além de outras premiações relevantes (checar o site da instituição:www.projetoreca.com.br/portal).
O Reca também está investindo no processo de certificação florestal, e hoje 50% da produção vêm de áreas certificadas por órgãos como o Innaflora e Instituto Biodinâmico Orgânico (IBD).
Também está sendo realizado um trabalho de conscientização, treinamento e capacitação de um grupo expressivo de agricultores do projeto. "Pretendemos certificar todas as nossas propriedades, bem como toda a cadeia produtiva", comenta o coordenador presidente Eugênio Vacaro.
Produção
A produção do Reca (Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado) é comercializada em várias regiões do Brasil, e há representações do Reca em Rio Branco (AC), Porto Velho (RO), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP). A organização também tem parceria com a Natura, que consome toda sua produção de manteiga de cupuaçu. Só em 2009, foram entregues 22 toneladas do produto à empresa de cosméticos, que emprega o sistema de repartição de benefícios nessa parceria. Cerca de 0,15% da receita líquida dos produtos à base de manteiga de cupuaçu são destinados à associação.
O Reca também é convidado para participar de feiras em todo o Brasil e outros países amazônicos. Além de vender e expor os produtos, os associados aproveitam as oportunidades para estabelecerem intercâmbios, contactar novos clientes e outras entidades para futuros negócios.
Resultados
O produtor Semildo Kaefer está na região desde 1978, e faz parte do Reca desde o início da associação. Atualmente ele tem 13 hectares de sistemas agroflorestais implementados. Sua produção anual chega a 40 mil quilos de cupuaçu, e há também açaí, café, pupunha, bacaba e rambotã. A renda anual do agricultor varia entre R$ 40mil e R$ 50 mil, e sua propriedade já tem certificação orgânica. Ele garante que "quando há este rótulo não pode haver queimada".
Já o agricultor Selvino Sordi implantou os SAFs em 5 hectares. No último ano produziu 18 toneladas de cupuaçu, mas chegou a alcançar o recorde de 30 toneladas. A área estava muito degradada antes do sistema agroflorestal, mas hoje ele colhe 22 tipos de espécies em sua propriedade.
Sordi explica que chegou à região em 1976 para criar gado. "A nossa situação melhorou depois que ingressamos no Reca. Sem isso muitas famílias já teriam ido embora, porque houve dificuldades tremendas", alega o produtor, ressaltando que a associação ajudou a impedir o êxodo das famílias para a cidade.
Residente em Nova Califórnia há 23 anos, Francisco Berkenbrock tem 16 hectares de produtos florestais plantados. Ele foi para a região pensando em implementar lavoura branca. "Antes não tínhamos alternativas e eu não sabia exatamente o que iria acontecer. Passamos por momentos difíceis, e o Reca foi a nossa salvação".
Hoje toda a família trabalha na produção, e o filho mais velho se formou como técnico agrícola para ajudar a cuidar da propriedade. Ele tem uma safra anual de 19 toneladas de cupuaçu, 4500 hastes de palmito e 2500 quilos de semente de pupunha. Sua renda varia entre R$60 mil e R$70 mil ao ano.
Também oriundo do Rio Grande do Sul, seu irmão Engelberto Berkenbrock tem 6 hectares e admite já ter extraído madeira da floresta pra vender. Ele garante que não compensou tirar madeira da mata, e que atualmente a renda obtida permite que não seja necessário o corte de árvores. "Ganha-se mais dinheiro com a floresta em pé do que derrubada, porque destruindo você só ganha uma vez. E as árvores levam tanto tempo pra crescer de novo que dá pra entender porque é considerado um crime o corte sem manejo", lamenta.
Seu Raimundo Cunha, 65, é natural da região. Hoje retira 600 quilos de palmito e 3 toneladas de cupuaçu por safra. Ele também planta palmito pupunha, café e castanha. Antes era seringueiro e extrativista de castanha, e admite já ter enfrentado dificuldades para alimentar a família. "O Reca melhorou a vida da gente, e tenho dois filhos que estudaram com apoio da associação".
Histórico
O Reca foi implementado na região de Nova Califórnia (RO) em 1987, por iniciativa de um grupo de agricultores oriundos de várias partes do Brasil (especialmente do Sul e do Centro-Oeste), que foram assentados pelo Incra no seringal Santa Clara, em meados da década de 70. As terras eram demarcadas e entregues às famílias com a condição de que as mesmas promovessem o desmatamento do terreno para a implantação da agricultura, sem planejamento ou manejo adequados.
Quem não desmatasse corria o risco de perder a terra para outro agricultor, e assim as famílias eram pressionadas a derrubar a floresta. Não demorou muito para que os produtores percebessem que o solo daquela região não era o mais propício para a introdução da chamada lavoura branca, baseada na plantação de trigo, arroz e milho, dentre outras espécies.
Diante das dificuldades encontradas, os agricultores migrantes promoveram uma parceria com seringueiros e pequenos agricultores da região, a fim de montar uma organização extrativista sustentável, que associasse suas experiências de organização social e cooperação aos conhecimentos dos povos da floresta, que conheciam as plantas frutíferas adequadas e melhor época de plantio.
Sem apoio, recursos e assistência técnica, e ainda convivendo com uma forte epidemia de malária, os associados enviaram o primeiro projeto ao então bispo do Acre Dom Moacyr Grech. A proposta foi enviada à Cebemo (Organização Holandesa de Co-financiamento e Desenvolvimento de Programas), que oferece apoio a grupos de países em desenvolvimento. Com os primeiros recursos recebidos, eles implementaram o sistema agroflorestal em 400 hectares, por meio do plantio de pupunheira para frutos, cupuazeiro e castanha da Amazônia (também conhecida como castanha do Pará).
A partir de 1992, o Reca passou por um período de fortalecimento institucional, e outros produtores do Acre e do Amazonas se integraram à associação. Desde então a organização passou a contar com o apoio do MMA, Embrapa/AC, e de diferentes ONGs estrangeiras, como a italiana Milco e a CCFD (Comitê Católico Contra Fome para o Desenvolvimento do Mundo), dentre outras.
O projeto recebe mais de 1500 visitas por ano, tanto de estudantes - alguns deles em fase de mestrado e doutorado - quanto de outras cooperativas, associações, ribeirinhos, grupos indígenas e outros autônomos.
Ação Social
Desde o surgimento da organização existia a preocupação de apoiar a formação educacional dos filhos dos produtores. A intenção é oferecer ensino adequado às famílias, para que os jovens sejam motivados a voltar para o campo e trabalhar na propriedade. A equipe de educação do Reca conseguiu ingressar vários alunos em uma Escola Família Agrícola, onde é aplicada a Pedagogia da Alternância, e está concluindo outra, em parceria com a Secretaria de Educação do Acre.
O aluno frequenta a escola 15 dias por mês, e nos outros 15 aplica as técnicas e conhecimentos aprendidos na propriedade da família. "Dessa forma o jovem não quebra o vínculo social que tem com o ambiente rural onde vive e traz novas possibilidades de desenvolvimento técnico para a família, fatos que contribuem para a redução do êxodo rural", comenta Hamilton Condack.
Além disso, foi criada uma equipe que desenvolve ações de saúde. Os membros realizam partos e alguns exames para análise de doenças, como malária, com equipamentos disponibilizados na sede. A organização contribui ainda com atividades sociais em todo o município de Nova Califórnia e dá apoio a outras três associações da região.
O Reca também investe em formação técnica para os sócios nas áreas de comercialização, administração rural, compostagem orgânica, práticas de produção e gestão da propriedade.
Organização
A organização é constituída por 12 grupos, cada um com um líder e dois coordenadores. As reuniões acontecem nos primeiros sábados de cada mês, e depois os líderes repassam as informações para seus grupos, que sempre têm uma coordenadora mulher. O líder organiza os trabalhos de grupos, como mutirões e reuniões, e o coordenador os trabalhos direcionadas à organização.
Existem ainda cinco equipes de apoio nas áreas de educação, comercialização, execução de projetos, conselho fiscal e apoio. A cada ano são promovidas duas assembleias gerais, onde todos os associados se reúnem para discutir as decisões finais, como aprovação e balanço de safra. A eleição da diretoria é realizada a cada dois anos.
Hoje a sede do Reca conta com um dormitório, refeitório, auditório para reuniões e salas de escritório. O espaço é utilizado para os encontros e reuniões de toda a associação.
Confira outras espécies encontradas nos SAFs do projeto
Pupunheira para frutos e sementes, acerola, araçá-boi, patoá, copaíba, andiroba, teca, cedro, mogno, cumaru, abiu, cerejeira, açaí de touceira e da espécie solteiro, ipê e amarelão.