Representantes de movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores, ONGs, entidades ambientalistas, organizações de afrodescendentes, organizações indígenas e pesquisadores universitários, do Brasil, Estados Unidos, Chile e Uruguai, reuniram-se no Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental, Trabalho e Cidadania, realizado em Niterói de 24 a 27 de setembro de 2001. Nessa ocasião denunciaram e debateram a preocupante dimensão ambiental das desigualdades econômicas e sociais existentes nos países representados.
A injustiça ambiental que caracteriza o modelo de desenvolvimento dominante no Brasil foi o foco das discussões. Além das incertezas do desemprego, da desproteção social, da precarização do trabalho, a maioria da população brasileira encontra-se hoje exposta a fortes riscos ambientais, seja nos locais de trabalho, de moradia ou no ambiente em que circula. Trabalhadores e população em geral estão expostos aos riscos decorrentes das substâncias perigosas, da falta de saneamento básico, de moradias em encostas perigosas e em beiras de cursos d'água sujeitos a enchentes, da proximidade de depósitos de lixo tóxico, ou vivendo sobre gaseodutos ou sob linhas de transmissão de eletricidade. Os grupos sociais de menor renda, em geral, são os que têm menor acesso ao ar puro, à água potável, ao saneamento básico e à segurança fundiária. As dinâmicas econômicas geram um processo de exclusão territorial e social, que nas cidades leva a periferização de grande massa de trabalhadores e no campo, por falta de expectativa em obter melhores condições de vida, leva ao êxodo para os grandes centros urbanos.
As populações tradicionais de extrativistas e pequenos produtores, que vivem nas regiões da fronteira de expansão das atividades capitalistas, sofrem as pressões do deslocamento compulsório de suas áreas de moradia e trabalho, perdendo o acesso à terra, às matas e as rios, sendo expulsas por grandes projetos hidrelétricos, viários ou de exploração mineral, madeireira e agropecuária. Ou então têm as suas atividades de sobrevivência ameaçadas pela definição pouco democrática e pouco participativa dos limites e das condições de uso das unidades de conservação.
Todas estas situações refletem um mesmo processo: a enorme concentração de poder na apropriação dos recursos ambientais que caracteriza a história do país. Uma concentração de poder que tem se revelado a principal responsável pelo que os movimentos sociais vêm chamando de injustiça ambiental. Entendemos por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis. Por justiça ambiental, ao contrário, designamos o conjunto de princípios e práticas que:
a - asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas;
b - asseguram acesso justo e eqüitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país;
c - asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito;
d - favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso.
Estamos convencidos de que a injustiça ambiental resulta da lógica perversa de um sistema de produção, de ocupação do solo, de destruição de ecossistemas, de alocação espacial de processos poluentes, que penaliza as condições de saúde da população trabalhadora, moradora de bairros pobres e excluída pelos grandes projetos de desenvolvimento. Uma lógica que mantém grandes parcelas da população às margens das cidades e da cidadania, sem água potável, coleta adequada de lixo e tratamento de esgoto. Uma lógica que permite que grandes empresas lucrem com a imposição de riscos ambientais e sanitários aos grupos que, embora majoritários, por serem pobres, têm menor poder de se fazer ouvir na sociedade e, sobretudo, nas esferas do poder. Enquanto as populações de maior renda têm meios de se deslocar para áreas mais protegidas da degradação ambiental, as populações pobres são espacialmente segregadas, residindo em terrenos menos valorizados e geotecnicamente inseguros, utilizando-se de terras agrícolas que perderam fertilidade e antigas áreas industriais abandonadas, via de regra contaminadas por aterros tóxicos clandestinos.
Os trabalhadores urbanos e rurais, por sua vez, estão freqüentemente submetidos aos riscos de tecnologias sujas, muitas delas proibidas nos países mais industrializados, que disseminam contaminantes que se acumulam de maneira persistente no meio ambiente. Esses contaminantes, além de provocar doenças nos próprios trabalhadores, produzem "acidentes" por vezes fatais com crianças que circulam em áreas de periferia onde ocorrem descartes clandestinos de resíduos. A irresponsabilidade ambiental das empresas atinge em primeiro lugar e com maior intensidade as mulheres, a quem cabe freqüentemente a lavagem dos uniformes de trabalho contaminados de seus maridos ou o manejo de recipientes de agrotóxico transformados em utensílios de cozinha. Esse ciclo de irresponsabilidade ambiental e social das empresas poluentes e de muitos gestores e órgãos governamentais, ameaça o conjunto dos setores sociais, haja visto que rios e alimentos contaminados por agrotóxicos e pela falta de tratamento de esgoto acabam por afetar as populações nas cidades.
A anencefalia nas crianças nascidas em Cubatão (SP), a presença das substâncias cancerígenas conhecidas como "drins" nas pequenas chácaras de Paulínia (SP), a estigmatização que perpetua o desemprego dos trabalhadores contaminados por dioxina no ABC paulista, a alta incidência de suicídio entre os trabalhadores rurais usuários de agrotóxicos em Venâncio Aires (RS) são exemplos que configuram as manifestações visíveis de um modelo fundado na injustiça estrutural e na irresponsabilidade ambiental de empresas e governos. Apesar do fato de que a lógica deste modelo é sistematicamente negada por seus responsáveis, que alegam a ausência de causalidade entre as decisões políticas e produtivas e os efeitos que têm sobre suas vítimas.
O enfrentamento deste modelo requer que se desfaça a obscuridade e o silêncio que são lançados sobre a distribuição desigual dos riscos ambientais. A denúncia do mesmo, por outro lado, implica em desenvolver articuladamente as lutas ambientais e sociais: não se trata de buscar o deslocamento espacial das práticas danosas para áreas onde a sociedade esteja menos organizada, mas sim de democratizar todas as decisões relativas à localização e às implicações ambientais e sanitárias das práticas produtivas e dos grandes projetos econômicos e de infra-estrutura. Pensamos que o tema da justiça ambiental - que indica a necessidade de trabalhar a questão do ambiente não apenas em termos de preservação, mas também de distribuição e justiça - representa o marco conceitual necessário para aproximar em uma mesma dinâmica as lutas populares pelos direitos sociais e humanos e pela qualidade coletiva de vida e a sustentabilidade ambiental. Por esse motivo criamos a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, que tem os seguintes objetivos básicos:
Elaborar coletivamente uma "Declaração de Princípios da Justiça Ambiental no Brasil" - Essa declaração será objeto de um processo de discussão contínuo de médio prazo, servindo para aglutinar forças, afinar conceitos e suscitar estratégias. Nos EUA, o movimento de justiça ambiental foi estruturado nacionalmente a partir do programa dos "17 princípios" elaborado em 1991, na Cúpula dos Povos de Cor pela Justiça Ambiental. No caso brasileiro, assim como naquele país, espera-se que um tal processo ajude a disseminar as lutas e estratégias associadas à noção de justiça ambiental.
Criar um ou mais centros de referências de Justiça Ambiental - Trata-se de uma proposta de democratização de informações, criando bancos de dados que contenham registros de experiências de lutas, casos concretos de injustiça ambiental, conflitos judiciais, instrumentos institucionais, etc. Trata-se também de aglutinar peritos de diferentes especialidades dispostos a apoiar as demandas de assessoria dos movimentos. Os centros ajudarão a acompanhar e divulgar resultados de pesquisa acadêmica sobre desigualdades ambientais. Fóruns periódicos debaterão e consolidarão as experiências dos diferentes tipos de lutas desenvolvidas.
Diálogo permanente entre atores - Promover o intercâmbio de experiências, idéias, dados e estratégias de ação entre os múltiplos atores de lutas ambientais: entidades ambientalistas, sindicatos urbanos e rurais, atingidos por barragem, movimento negro, remanescentes de quilombos, trabalhadores sem terra, movimento de moradores, moradores em unidades de conservação, organizações indígenas, ONGs, fóruns e redes. Além de encontros específicos por setores, pretende-se organizar encontros maiores que ampliem a cooperação e o esforço comum de luta. Um dos principais objetivos desse esforço é sensibilizar os meios de comunicação, os formadores de opinião e a opinião pública em geral.
Desenvolvimento de instrumentos de promoção de justiça ambiental - Produzir metodologias de "Avaliação de Equidade Ambiental", manuais de valorização das percepções ambientais coletivas, mapeamento dos mecanismos decisórios com vistas à democratização das políticas ambientais em todos os níveis, cursos para a sensibilização dos agentes do poder público envolvidos com a regulação do meio ambiente. Produzir argumentos conceituais e evidências empíricas em favor da sustentabilidade democrática e da justiça ambiental.
Pressionar órgãos governamentais e empresas para que divulguem informações ao público - Reivindicar a publicação sistemática de informações sobre as fontes de risco ambiental no país. As agências estaduais, em particular, deverão ser pressionadas publicamente para produzir dados sobre a distribuição espacial dos depósitos de lixo tóxico e perigoso.
Contribuir para o estabelecimento de uma nova agenda de ciência e tecnologia - Apoiar pesquisas voltadas para os temas da justiça ambiental realizadas sempre que possível através do diálogo entre pesquisadores, comunidades atingidas e movimentos organizados. Ajudar a formar técnicos e peritos que trabalhem dentro dessa perspectiva. Estimular o desenvolvimento de novas metodologias científicas e de novas tecnologias que ajudem a promover a luta contra a injustiça ambiental, sempre respeitando os direitos de cidadania e o saber das comunidades locais.
Estratégia de articulação internacional - Desenvolver contatos com parceiros internacionais no campo da estratégia política, da cooperação científica, da troca de informação sobre normas e padrões ambientais, da luta contra a exportação de processos poluentes e de depósitos de rejeitos perigosos. Preparar uma oficina sobre Justiça Ambiental no II Fórum Social Mundial em Porto Alegre, 2002.
Consideramos que o termo Justiça Ambiental é um conceito aglutinador e mobilizador, por integrar as dimensões ambiental, social e ética da sustentabilidade e do desenvolvimento, freqüentemente dissociados nos discursos e nas práticas. Tal conceito contribui para reverter a fragmentação e o isolamento de vários movimentos sociais frente aos processos de globalização e reestruturação produtiva que provocam perda de soberania, desemprego, precarização do trabalho e fragilização do movimento sindical e social como um todo. Justiça ambiental, mais que uma expressão do campo do direito, assume-se como campo de reflexão, mobilização e bandeira de luta de diversos sujeitos e entidades, como sindicatos, associações de moradores, grupos de afetados por diversos riscos (como as barragens e várias substâncias químicas), ambientalistas e cientistas.
As entidades que promoveram e participaram do Colóquio farão reuniões para organizar a estrutura de funcionamento e as primeiras atividades da Rede, com base nos princípios acima descritos. Todos os que se sentirem de acordo com a proposta da Justiça Ambiental estão convidados a participar.
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